F1 Por dentro da F-1: Como montar um calendário - Julianne Cerasoli Skip to content

Por dentro da F-1: Como montar um calendário

Lembro que, logo que a Liberty Media assumiu o controle da F1, eles começaram a falar em reorganizar o calendário por zonas. Ou seja, ele por exemplo começaria na América do Norte – agrupando Canadá, EUA e México – e terminaria na Ásia. Foi o tipo de ideia que fez aqueles que já são “velhos de guerra” na categoria se entre olharem e pensarem que os norte-americanos não faziam ideia de onde tinham se metido.

Sim, olhando de fora, e inclusive lembrando que é a FOM quem paga pelo transporte do equipamento das equipes, faz muito mais sentido ter uma corrida em Austin e outra, duas semanas depois, em Montreal, do que correr em Mônaco, depois em Montreal, e depois voltar ao sul da França para andar em Paul Ricard. O difícil é convencer os promotores (que, com a projeção de diminuição de receita vinda dos direitos de TV em um mundo no qual ela vem perdendo espaço e não se encontrou uma solução para cobrar as mesmas cifras da internet, vêm se tornando a grande fonte de dinheiro da categoria) e até mesmo as equipes disso.

Toda essa introdução vem para responder a pergunta de um leitor que inspirou o post de hoje: como montar um calendário de Fórmula 1?

Há vários pontos que são levados em consideração, e que mostram por que é uma missão bem mais complicada do que parece.

 

Datas compradas e outras particularidades

O calendário começa a ser desenhado pelas provas que têm suas datas condicionadas por contrato. Mônaco é uma delas, Áustria é outra, Monza, Canadá, Singapura são outras; no Japão a prova tem de ser no final de semana anterior ao feriado de segunda-feira dos esportes em outubro; Abu Dhabi paga para fechar o ano; Austrália tem de ser o primeiro e não pode coincidir com o Aberto da Austrália de Tênis. 

Há ainda outras particularidades, como por exemplo feriados, o que depende de cada cultura: na China, por exemplo, a corrida sempre evita concorrer com o festival Qingming, feriado prolongado em que muitos aproveitam para viajar para o Exterior ou visitar suas famílias fora de Xangai. E no Brasil a avaliação é de que aproveitar o feriado da Proclamação da República é, na verdade, uma vantagem.

Mas há ainda motivos extra-oficiais: na Rússia, Putin gosta que a prova seja perto de seu aniversário, que é em 7 de outubro. E, como os russos estão no top 3 entre os que pagam mais para receber a prova, seu desejo é ordem. Porém, neste ano, isso significaria mais um back-to-back (quando duas corridas são feitas em finais de semana seguidos) Rússia-Japão, algo que foi bastante cruel em termos de fuso ano passado. Mas aí entram as outras pressões, como veremos adiante.

Condições climáticas

Sim, isso deveria ser o fator preponderante, mas vem abaixo dos contratos. Ainda mais sabendo que os carros são baixos demais para se correr com muita chuva, é preciso escolher bem quando ir para o Vietnã (prova será em abril), Singapura, e até mesmo São Paulo (quem não lembra das tempestades de março?). E o frio também é um fator limitante para a temporada europeia (é possível que ela comece pela Holanda ano que vem e muita gente duvida que seja uma boa ideia, pois em maio os termômetros ficam mais perto dos 10 do que dos 20 graus por lá) e também para a data da China. Inclusive, a união entre o tal feriado prolongado e o clima de Xangai explica por que vamos da Austrália para o Bahrein e depois China, e não o contrário.

Por outro lado, o Bahrein não pode ser muito mais tarde – ou mais próximo de seu verão – e Abu Dhabi também recebe a F1 quando a temperatura está mais agradável. Nos dois lugares, a temperatura fica em torno dos 25ºC quando estamos por lá. No Verão, é normal passar dos 40ºC, imaginem a temperatura do asfalto! 

Concorrência:

Algo básico que a Liberty não considerou quando pensou em separar o campeonato por áreas é na concorrência entre os GPs. Existe uma camada muito considerável – e ela é maior ou menor dependendo da prova – de gente que viaja para ver a corrida, e faz isso mais de uma vez no ano porque tem mais de um GP “vizinho”.

Na Europa, por exemplo, estão todos de olho na maré laranja. Os torcedores de Max Verstappen têm seu jeito particular de curtir as corridas, e preferem as provas em que podem ir com seus motorhomes e acampar. Por isso, preferem as corridas da Áustria (em que há ótima estrutura de camping e fica a 10h da Holanda de carro) e Spa-Francorchamps. Ano que vem, terão ainda o GP da Holanda, que teve de ser acomodado bem longe da data de Spa para evitar concorrência. Ou seja, devemos ter Holanda em maio, Áustria em junho e Bélgica em agosto: um calendário equilibrado para tentar conquistar por 3x os fãs de Max.

Outro exemplo é Canadá x Austin/México. É muito mais provável o fã de F1 da América do Norte escolher duas provas para ir no ano com essas provas separadas por quatro meses do que se elas fossem agrupadas, e o mesmo acontece com Baku x Sochi – não sei se vocês sabem, mas só 900km separam essas duas cidades, e são duas provas que contam com muitos estrangeiros. 

Mas voltando à dobradinha Austin e México: se nenhuma das duas tem contrato atrelado a uma data específica, e elas são perto o suficiente para concorrer com o mesmo público, por que estão juntas? Aí vamos ao último item.

 

Pressão das equipes

Imagine pagar para toda a equipe voar para Austin, depois retornar à base na Europa, para alguns dias depois colocar todo mundo em um avião de novo para ir ao México? Ou mesmo pagar para que eles fiquem?

Ou, olhando pelo lado de quem trabalha na F1: vamos supor que você é um mecânico, ou seja, começa a montar tudo na segunda-feira antes da corrida e só vai viajar de volta na segunda-feira da semana seguinte. Cada corrida significa uma semana fora de casa e, se ela for, por exemplo, em Austin, pode acrescentar aí um dia a mais para a ida e outro para a volta. Se o campeonato fosse setorizado e você tivesse três corridas na América do Norte, isso basicamente significa que, ou você não voltará para casa por um mês e meio, ou cruzará o Atlântico seis vezes. E é claro, não para por aí: você vai ter uma semana em casa antes de começar o bloco europeu, e depois vem o bloco do Oriente Médio, outro da Ásia. Isso sem falar que tudo começou com voos intermináveis e um jet lag impossível de bater na Austrália.

Especialmente para quem tem família, até mesmo o arranjo atual do calendário anda tão pesado que as equipes estão com dificuldades de manter o padrão de seus funcionários. Por mais apaixonados que sejam pela profissão, cada vez mais eles ficam alguns anos nessa vida e logo pedem para serem transferidos para uma função de fábrica. E os times têm resistido a duplicar suas equipes de pista temendo perder competitividade – e, de qualquer maneira, só os grandes teriam dinheiro para fazer isso, o que aumentaria as discrepâncias.

Assim, mesmo que Austin e México não gostem de ser um back-to-back, ou eles pagam a mais pela data fixa, ou têm de aceitar as condições das equipes que, neste caso, inclusive pagam para seus funcionários irem para Cancún, por exemplo, entre uma corrida e outra e dão incentivos para que eles não voltem à Europa, pois isso é mais barato e garante que eles estarão mais descansados.

Austin e México é uma dobradinha que faz sentido, assim como China e Vietnã, que deve ser dobradinha a partir do segundo ano em Hanói, depois que todos se convencerem de que será possível fazer todo equipamento passar pela alfândega do país a tempo. Não que todas as dobradinhas sejam assim. Tivemos Rússia e Japão ano passado e as equipes reclamaram – não era fácil encontrar voos e a diferença de fuso era gigantesca – então Sochi agora faz back-to-back com Singapura (o voo continua difícil de encontrar e caro, mas pelo menos nos mantemos no fuso europeu para a corrida noturna, então o baque não será tão grande). 

Este é um ótimo exemplo para entender por que o calendário da F1 fica nos jogando como bolinha de ping-pong ao redor do globo: pensando que Singapura e Japão são em datas fixas e na Rússia é preciso agradar Putin, pode parecer um despropósito, mas no final das contas não há muita saída.

Para vocês terem uma ideia de como é, deixo com vocês meu mapa dos voos. Notem que em 2016 peguei “só” 55, porque não fiz as quatro primeiras (e elas são beeem pesadas!). Do GP da Espanha de 2016 até aqui, não perdi nenhuma.

7 Comments

  1. qto de milhas vc tem acumulado ? rs… 🙂

  2. Cara, que vida é essa!?!?!?
    Complicada, mas muito massa, Julianne, se alguma equipe precisar de mais um fumcionário de pista, já que todos tão desistindo, pra quem mando meu currículo?
    Kkk
    Muito legal ler seu blog e descobrir que o fuso Sochi-Japão é tão grande, tinha a impressão que era tranquilo pq os países são próximos um do outro.
    Para quem está de fora é bem óbvio que a Liberty não possuía a menor ideia de onde havia se metido, mas para quem está dentro do Paddock, até onde vocês enxergam o fundo desse poço Julianne? A impressão aqui de fora, pelo menos a minha, chega ao ponto de achar que nenhuma das equipes vai renovar pra 2021 e vão criar uma categoria à parte.
    Uma curiosidade, nessa brincadeira já aprendeu quantos idiomas?
    Grande abraço a todos do Blog!

    • Sempre tem vaga no Linkedin, e não tô de brincadeira.
      O que deve acabar acontecendo é que a Liberty vai ter que ceder em todas as mudanças que quer fazer e as coisas não vão mudar muito. Enquanto a imprensa em geral fala em besteiras como reabastecimento, o que pega são teto orçamentário e padronização de peças (que estão relacionados, inclusive).
      Eu falo quatro idiomas, mas não aprendi nenhum na F1, só algumas palavras aqui e ali. Mas é claro que o nível do inglês melhora muito, ainda mais porque quase todos os meus amigos são ingleses. Falo bem mais inglês do que português atualmente.

    • Caramba, coloquei na brincadeira pro texto ficar divertido e descobri que se pode ir pra lá pelo LinkedIn!
      Hahahaha
      Agradecido pela resposta Julianne, Grande abraço!

  3. sabe muito, excelente texto.

  4. Parabéns pela riqueza de conteúdo e brilhantes detalhes, trabalho fantástico Ju !


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