F1 Blog Takeover: Pilotos, Cães e Masculinidade - Julianne Cerasoli Skip to content

Blog Takeover: Pilotos, Cães e Masculinidade

A primeira oportunidade que tive de ser lida por um público maior do que eu conseguia atingir com meu pequeno blog que tinha começado alguns meses antes foi quando o Luis Fernando Ramos convidou três produtores de conteúdo que ele gostava de ler para escrever um artigo para o blog dele. Foi lá no final de 2010. Lembro até hoje de onde estava e como as ideias foram surgindo para o texto.

Foi um tijolo na história que me levou à F1, mas um tijolo importante por me dar confiança. É como se alguém que estava dentro do barco me visse tentando embarcar e puxasse minha mão. Venha, você pertence aqui.

Então já faz um anos que tento retribuir isso e convido o pessoal para me enviar textos sobre F1. Aqui estão os 10 selecionados de mais uma temporada do Blog Takeover.

Spoiler: adorei a abordagem e como a Natália trabalhou esse tema e por isso escolhi esse texto para encerrar o Blog Takeover 2024-25.

Por Natália Viega

A publicação não poderia ser mais genérica. 

Duas fotos, lado a lado. Na primeira, Charles Leclerc posa com Leo, um dachshund de pelo longo adotado por ele e pela namorada, Alexandra, em abril deste ano. Na segunda, James Hunt aparece de macacão, cercado por mulheres — uma imagem que se encaixa perfeitamente no imaginário comum dos fãs de Fórmula 1 sempre que o campeão de 1976 é mencionado. 

“Não existem mais pilotos como antigamente”, diz a legenda. 

Nos comentários, muitos concordam com a comparação e aproveitam para criticar o comportamento e o estilo do grid atual. Reclamam que os pilotos de hoje são “frescos” e “cheios de mimimi”, como se isso fosse uma estratégia para agradar o crescente público feminino da categoria. Alguns até questionam a sexualidade dos competidores modernos, saudosos de uma época em que “pilotos eram machos de verdade”. 

Ao ler as respostas dessa publicação, bem como os exemplos apontados pelos usuários, nasceu a ideia deste texto. Ele não é uma defesa apaixonada de Leclerc (ou de seu cachorro), mas uma análise sobre James Hunt — frequentemente apresentado como o modelo ideal de um piloto, embora esteja longe de ser um exemplo absoluto — com base nas palavras de quem o conhecia de verdade. 

Aproveito para agradecer a Cazzy (@cazzyf1 no X), que faz um trabalho incrível de recuperação e arquivamento de conteúdo sobre a Fórmula 1 clássica. 

Um homem com um “cão negro” no ombro 

James Hunt é muito mais complexo do que os relatos de seus contemporâneos nas pistas ou o que foi mostrado no filme Rush — criticado pelo próprio filho de Hunt, Freddie, por ter transformado o pai em “um babaca”. James era um homem multifacetado, cuja criação moldou grande parte de sua personalidade e visão de mundo. 

Criado por pais extremamente conservadores que mantinham rígida disciplina entre os seis filhos, James desenvolveu uma personalidade rebelde desde cedo. Quando criança, tinha acessos de raiva violentos, que foram suprimidos ao longo do tempo, dando lugar a episódios recorrentes de depressão. 

John Watson, Jody Scheckter, Emerson Fittipaldi, Niki Lauda e James Hunt no funeral de Ronnie Petterson, em 1978

Anthony Horsley, chefe da equipe Hesketh Racing, usou uma expressão de Winston Churchill para descrever os humores de James entre 1973 e 1975. Churchill dizia ser atormentado por um “cão negro” — uma metáfora vitoriana para a depressão. Horsley

afirmou que James “nasceu com um cão negro sobre os ombros”, mas que as corridas afastavam essa sombra, ainda que temporariamente. Após sua aposentadoria, porém, o “cão negro” voltou com força. 

Segundo Horsley, em entrevista para o livro James Hunt: The Biography, de Gerald Donaldson, “[…] depois da ‘lua de mel’ inicial depois de pendurar o macacão, o ‘cão’ se instalou sobre seus ombros e não foi embora. Ele ficou mais amedrontado e procurou distrações em sexo, bebida, drogas e rock and roll, por assim dizer”. 

Sarah Lomax, sua segunda esposa, revelou que James se tornou cada vez mais introspectivo após deixar as pistas. “Ele estava em guerra consigo mesmo. Os episódios depressivos tornaram-se intoleráveis, e ele parou de tentar resistir a eles”, contou ela. 

Os três vícios de Hunt 

Boa parte das imagens nostálgicas de James o retratam ao lado de mulheres, fumando ou bebendo. Embora essas atividades fossem de fato frequentes em sua vida, elas eram, na verdade, formas de lidar com sua depressão. 

No livro de Donaldson, Jane Birbeck, parceira de longa data do piloto, contou sobre uma ocasião em que o encontrou “aos prantos”, atormentado pela culpa de seus desejos por outras mulheres. James confessou que seu desejo era insaciável e reconheceu que isso era injusto com Jane, terminando o relacionamento por respeito a ela. 

Sobre sexo antes das corridas, James explicou em Against All Odds que evitava por questões de concentração: “[…] acredito que é a comunicação entre duas pessoas que torna isso gratificante, e antes de uma corrida eu costumo ser pouco comunicativo”. 

Já o álcool e as drogas tornaram-se companheiros frequentes na vida do piloto, tanto para manter a adrenalina das pistas quanto para silenciar suas emoções. Durante as semanas anteriores à corrida decisiva em Fuji, em 1976, Hunt e o amigo Barry Sheene, campeão de motovelocidade, passaram os dias consumindo cocaína e maconha em um ciclo interminável de festas. 

Mesmo após a aposentadoria, o álcool permaneceu uma constante. Sarah Lomax relatou que ele bebia vodca por dias seguidos para tentar amenizar os efeitos da depressão, mas sem sucesso. 

Pai de pet? Sim, senhor 

Como dito na introdução, este texto nasceu de uma indagação minha sobre um post que colocava James Hunt e Charles Leclerc lado a lado. Porém, se tivesse escolha, Hunt provavelmente teria preferido posar ao lado de seu pastor alemão, Oscar, em vez

das mulheres seminuas que o cercavam nas fotos icônicas utilizadas pelos seus admiradores. 

Oscar era seu fiel companheiro, acompanhando-o em partidas de golfe e até em jantares sofisticados em Londres e Marbella. Donaldson descreveu Oscar como “o filho que James nunca teve naquela época” e afirma que o piloto dava ao animal o melhor tratamento possível. Isso se estendia a outros cães, pelos quais James demonstrava grande empatia, preocupando-se com seu bem-estar e condições de vida. 

Nigel Roebuck, também jornalista, relatou um episódio em que James encontrou um cachorro faminto e tremendo no paddock. Após alimentá-lo, Hunt só descansou quando garantiu que alguém se responsabilizaria por cuidar do animal. 

Essa postura se refletia também em relação à vida selvagem. James acreditava que animais em sua propriedade deveriam ser deixados em paz e, se necessário, que pragas fossem controladas da forma mais humana possível. Te lembrou de alguém? 

Sempre houve ativistas ao volante 

Outra faceta de Hunt ignorada pelos espectadores mais nostálgicos e avessos a Fórmula 1 moderna é a de ativista. Sim, aquela figura desbocada e risonha, sempre com um cigarro ou uma garrafa na mão também tinha olhos para causas sociais e para os direitos humanos. 

Uma das suas ações mais comentadas foi durante os anos 80. Já aposentado, o inglês decidiu focar seus esforços na luta contra o Apartheid, regime de segregação racial que durou até os anos 90 e que teve fim com a chegada de Nelson Mandela ao poder. 

Murray Walker, lendário comentarista de provas de Fórmula 1, foi testemunha de alguns destes momentos de protesto por parte de Hunt. “Certa vez, estávamos cobrindo o Grande Prêmio da África do Sul […] De repente, e sem motivo aparente, ele começou a atacar o apartheid. […] Nosso produtor passou um bilhete dizendo para falarmos sobre a corrida. Então, James disparou ao vivo: ‘Graças a Deus não estamos realmente lá!’”. 

O esforço não se limitou aos comentários ácidos contra a segregação racial vivida no país. Em depoimento dado ao jornal The Guardian, um homem que preferiu não se identificar e que presidia reuniões para a organização de ações em apoio a grupos negros contou que, em certa noite, foi surpreendido pela presença de James. 

Segundo ele, “a reunião havia acabado de começar quando a campainha tocou. Um sujeito com uma aparência vagamente familiar pediu desculpas pelo atraso e perguntou se podia estacionar sua bicicleta no hall. Demorei um pouco, mas eventualmente a ficha caiu. Era James Hunt […]. Ele não queria que seus comentários

fossem transmitidos na África do Sul e, quando eram, destinava seus honorários a grupos que lutavam por mudanças lá”. 

A luta em prol da igualdade racial era apenas uma pequena fração do caráter de Hunt. Parafraseando John Watson, James tinha uma natureza “compassiva e amorosa” que, “infelizmente, não era devidamente transmitida ao público, que só ouvia falar do lado sensacionalista [dele]”. 

Por trás do mito, um homem e seus demônios 

E no fim, voltamos ao começo. James era uma pessoa carismática, alegre e que enchia o ambiente com a sua presença particularmente cativante. Seus duelos com o sistemático e sério Niki Lauda se transformaram em filme — não muito bem visto pela família, é verdade — e sua coragem em enfrentar a tempestade em Fuji o fizeram um campeão de Fórmula 1. 

No entanto, ele era mais do que o piloto feroz, o playboy festeiro, o amante faminto ou o viciado por adrenalina. Ele era mais do que as fotos rodeado de mulheres, que amplamente divulgadas em resposta às atitudes e posicionamentos dos pilotos de hoje. 

James Hunt foi um homem que lutou por muito tempo contra uma depressão quase incapacitante. Um homem que encontrou alívio emocional na bebida, nas drogas e na cama. Um homem que, por pura força de vontade, buscou se entender para ser melhor não para si mesmo apenas, mas também para a família e para os filhos. 

Ele era um homem que, com o próprio processo de cura, se deu conta de que tinha uma voz e que podia usá-la para o bem, tanto dentro quanto fora do esporte. Um homem que desejava fortalecer a sua posição como comentarista e como alguém que não aceitava injustiças sociais. 

James era um pai esforçado, um filho amado e um parceiro que, finalmente, estava pronto para dar o próximo passo na sua vida ao lado da namorada, Helen. Um homem que, infelizmente, recebeu o pior lembrete de que, por mais que ele fosse rápido, os demônios do seu passado o alcançariam de uma forma ou de outra. 

E é esse piloto, de “colhões grandes” e coração maior ainda que deve ser exaltado, e não a figura sob o pedestal da nostalgia e os holofotes do passado. Um piloto que, no fundo, no fundo, não é tão diferente dos atletas que vemos nas pistas hoje.

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