Quem está acompanhando a F1TV já deve ter visto o jornalista Sam Collins fazendo análises técnicas. Ele é um bom exemplo de como a categoria começou a olhar de uma maneira diferente a quem foge dos padrões. Afinal, há pouco tempo era o cabelo afro que chamava atenção de um jornalista que tinha mais clientes no Japão do que em seu próprio país, a Inglaterra. Agora, é a maneira clara e didática como Sam consegue explicar até mesmo as mais complicadas entranhas dos carros de F1 que lhe abre caminhos.
Ele sempre foi assim, na verdade. Sempre foi o cara de quem ir atrás quando alguma dúvida técnica surgia, e isso não é por acaso: Sam Collins não é jornalista por formação (na verdade, o jornalismo hoje não é sua principal atividade, mas chegaremos lá). O inglês de ascendência nigeriana até sonhou em ser piloto (ou de F1, ou de aviões de caça, mas que teve que abandonar ambos os sonhos basicamente porque cresceu demais – ultrapassa facilmente os 1,90m) e foi estudar engenharia, para tentar se manter no automobilismo.
A paixão veio dos domingos vendo F1 na BBC – algo por que os ingleses, há anos, têm de pagar muito caro para ver – e de uma pista abandonada em Crystal Palace, sul de Londres, onde Sam cresceu (e, se até hoje, não se trata exatamente de uma das melhores áreas da cidade, imagino o que era nos anos 1980): “Eu ia para a pista com minha bicicleta e ficava imaginando como seria pilotar um carro lá. Gastava todo dinheiro que seria do meu lanche na escola em lojas de segunda mão comprando revistas de corrida antigas. Gostava também de trens, aviões, todo tipo de máquina. Visitava os museus de Londres. Queria aprender tudo o que podia sobre como as coisas funcionam. Eu me interessava mais pelas máquinas do que pelos pilotos.”
O caminho natural de Sam foi estudar engenharia automobilística na faculdade, na qual entrou aos 16 anos, pulando o que seria equivalente ao Ensino Médio. Lá, ele adaptou seu primeiro carro de corrida – um Ford Fiesta! – e competiu com ele. Depois se aventurou no rali. “Bati em muitas árvores e percebi que era provavelmente a hora de parar porque eu não tinha talento suficiente.” Sam ainda se aventurou na Fórmula V, sem muito sucesso. Naquela época, ele acredita que era o único negro correndo em carros na Inglaterra – Lewis, bem mais novo, estava no kart – e lembra que as pessoas olhavam para ele, pelo menos, com curiosidade.
“Uma vez meu motor quebrou, então eu troquei de roupa e fui para a arquibancada ver a próxima bateria. Ouvi uma conversa dos caras que estavam na minha frente – não sei se sabiam que eu estava ali – mas quando o narrador do circuito disse que eu não largaria, eles comentaram que ‘negro sabe roubar carro, mas não sabe dirigir’. Eu nunca tinha ouvido aquilo na vida. No sul de Londres, acho que se uma pessoa fala um negócio desses ela não sai de lá viva. Esse nível de racismo era algo que eu não conhecia, é algo provinciano e ignorante. E o que eu encontrei no automobilismo foi muita ignorância, mas não ódio”.
Sam Collins
Com Hamilton, Sam lembra que não foi bem assim. “As marcas queriam me patrocinar por eu ser diferente. Com Lewis, havia muito mais hostilidade. Primeiro porque ele era bom e levava a coisa a sério, e acho que também por ele vir de classe baixa. Eu era um cara de classe média. Odiavam ele. Falavam que ele sempre estava trapaceando, que ele só conseguia as coisas porque era negro.”
Enquanto Hamilton foi progredindo nas pistas, Sam foi encontrando seu caminho não com a carreira de engenheiro em si, mas com o jornalismo. Quando recebeu a primeira proposta na área, acabou largando a faculdade e traçando um novo caminho. “Eu percebi que ninguém nas revistas tinha uma licença para correr ou sabia como os carros realmente funcionam, então acabei me tornando um jornalista técnico e entrando na F1 meio que pela porta dos fundos, pela revista Racecar Engineering.”
Mas mesmo com uma história tão voltada aos carros, hoje esse é seu trabalho de fim de semana, ou diversão pela qual ele é muito bem pago, como ele mesmo diz. E de segunda a sexta? O jornalista-engenheiro-piloto Sam Collins é… um apaixonado político.
E como o mundo das corridas encontra a política? Seu interesse pelo automobilismo o levou a estudar mais sobre soluções de transporte para as cidades, focadas em sustentabilidade, e essa é hoje uma área importante para ele em sua atuação como councillor, que é uma espécie de vereador, pelo partido Liberal Democrata, em Hitchin, ao norte de Londres.
Que história, não? Tem umas passagens sensacionais dessa entrevista que Sam deu para o podcast Driven by Diversity. E algumas bem dolorosas e necessárias de serem ditas, sobre como ele recebeu ataques racistas e questionando suas credenciais quando começou a aparecer nos vídeos da F1 – o que só não aconteceu antes por conta de seu envolvimento com a política. “O Black Lives Matter deu um chute no vespeiro. Eu nunca vi tanto antirracismo no mundo do automobilismo, mas eu nunca vi um racismo tão aberto também. Parte de mim quer voltar a como era: eu era só um cara negro no meio do paddock e isso era apenas uma coisa nova, ninguém realmente se importava. Mas não é algo que diz respeito somente a mim. Temos que fazer isso para a próxima geração, para pessoas que vêm de partes do mundo nas quais o automobilismo nunca chegou.”
4 Comments
E tudo isso na civilizada Inglaterra, provando que civilização é um conceito muito relativo.
Ótimo texto.
Tomara que o Sam tenha possibilidade de lê-lo.
Um abraço.
Rafael Helm.
Infelizmente, vai ser muito difícil, ou provavelmente impossível, fazer desaparecer as questões não só do racismo como também da homossexualidade, como, por exemplo, se viu recentemente no EURO 2020 e também na Hungria. Para complicar ainda mais, as eleições de Bolsonaro e de Trump não vieram ajudar em nada e parece que o mundo em vez de andar para a frente, está a retroceder.
cumprimentos
visitem: https://estrelasf1.blogspot.com/
Primeiro piloto negro a disputar provas de Grand Prix foi um brasileiro natural de Campinas-SP, Benedicto Lopes. Estreou no Circuito da Gavea, pista conhecida como “Trampolim do Diabo”, em 1934 dirigindo uma Bugatti, correu também na Itália e Portugal.
Nos anos 30 até 1954, o GP Cidade do Rio de Janeiro atraia grandes nomes internacionais como Pintacuda equipe Alfa Romeo, cujo carro era preparado pela Ferrari. Hans Stuck da Auto Union, monolugar de motor traseiro, projetado por Ferdinand Porsche, verba do governo nazista, num consorcio envolvendo, entre outras empresas, Audi e DKW, além dos famosos pilotos Ascari, Villorezi, Varzi. A francesa Hellé Nice, moça bonita boa de braço. o argentino Foirlan Gonzalez consagrado por conquistar a primeira vitória da Ferrari na história.
Voltando ao brasileiríssimo, afro descendente, Benedicto Lopes, consignou vitórias na estrada de Petrópolis, Chapadão em Campinas, Quinta da Boa Vista RJ, um quase triunfo no importante GP da Gavea, 1935, quando liderava e á três voltas do fim chocou-se com um retardatário. Tais proezas lhe rendeu convite do Automóvel Clube de Portugal para correr na Europa. Participou de provas no Estoril e na Itália de onde retornou carregando três troféus.
Nem Chico Landi foi o pioneiro em corridas fora do Brasil, nem Hamilton primeiro negro na F1 e sim Benedicto Lopes.