Será que Lewis Hamilton tinha mesmo que fazer sua segunda parada? A estratégia não teria sido uma forma da Mercedes aplicar ordens de equipe sem ter de pedir para seu campeão sair do caminho de Valtteri Bottas? Todos os números – principalmente o mais importante deles, a quantidade de borracha que faltava nos pneus do inglês, apontam que não. A única possibilidade seria tentar se segurar à frente de Sebastian Vettel e garantir a dobradinha mas, quando Hamilton parou, com 11 voltas para o fim, era mais provável que ele conseguisse usar a aderência dos pneus macios para tirar 5s e passar Vettel do que se segurar com pneus que cairiam do penhasco, na linguagem que se usa na F-1, e rapidamente se tornariam 3s por volta mais lentos. Naquele momento, ele tinha 15s de vantagem para o alemão, muito menos velocidade de reta e perderia, também, a vantagem nas curvas.
Em outras palavras, na volta 42, quando chamou Hamilton aos boxes, a Mercedes já tinha cometido dois erros com a estratégia do inglês por acreditar numa premissa que não era verdadeira e julgou que já tinha perdido a dobradinha mesmo tendo o carro mais rápido na corrida. A vitória de Bottas nunca esteve em questão.
Algo que parece ter atrapalhado o julgamento de muitos foi um gráfico que estreou justamente neste GP do Japão, mostrando a porcentagem de desgaste dos pneus. Ele tem de ser interpretado junto a algo com que nos acostumamos a ver desde a chegada dos pneus Pirelli, em 2011: a degradação destes pneus não é linear. Ou melhor, é linear até o ponto em que eles desabam do que se convencionou chamar de penhasco (a expressão usada na F1 é “to fall off the cliff”). Basicamente, usando a informação do gráfico, os engenheiros explicaram após a prova que um pneu vai de 100% a 70% na mesma velocidade que vai de 70 a cerca de 10%.
Também é a importante a informação de que os compostos C2 e C3 (médio e macios no Japão) têm performance e duração próximas. Em Suzuka, a diferença de performance era de 0s6 e a durabilidade, praticamente a mesma. Já o duro era 1s4 mais lento que o médio.
Mas por que o GP do Japão chegou a essa situação?
Ainda no grid, entrevistei Mario Isola sobre as mudanças nas condições de pista após toda a chuva que veio com o tufão e ele apontou que teríamos uma corrida de duas paradas devido ao desgaste maior em relação à sexta-feira. Red Bull e Ferrari também largaram com isso em mente, mas a Mercedes, confiante de que a melhor aerodinâmica de seu carro poderia compensar o desgaste, estava em dúvida, e planejava usar isso para dividir suas estratégias e conseguir a dobradinha. Já à Ferrari interessava usar a posição de pista para se defender, uma vez que eles sabiam que seu desgaste de pneus seria maior, mas sua vantagem nas retas era tanta que, mesmo com o DRS aberto, a Mercedes era só cerca de 2 km/h mais rápida.
As coisas pareceram começar bem para a Mercedes quando Vettel soltou a embreagem um pouco antes das luzes se apagaram e se atrapalhou na largada, e Charles Leclerc acabou com sua corrida nos primeiros metros, também com uma largada ruim e tocando-se com Max Verstappen, tendo de trocar o bico de seu carro (após longas discussões via rádio entre ele, a equipe, e a FIA, em mais um exemplo de falta de pulso no pitwall ferrarista). Com uma grande largada, Bottas pulou para primeiro, Vettel conseguiu se manter em segundo e Hamilton perdeu terreno depois de ser seguro por três voltas por Leclerc.
Mesmo assim, o inglês conseguiu recuperar o terreno ao longo do primeiro stint, enquanto Vettel ouvia que a Ferrari seguiria com o plano A de duas paradas. A janela para isso abriria na volta 14 e, na seguinte, a Mercedes teria a primeira oportunidade real de fazer o undercut, pois Hamilton estava a menos de um segundo de Vettel. Porém, enganados de que a estratégia de uma parada poderia ser melhor para seu carro, decidiram não chamá-lo. A Ferrari não deu sopa para o azar e Vettel entrou na volta 16. Bottas naquele momento era o único carro andando em 1min34 e claramente tinha sido instruído que faria duas paradas. Logo, foi chamado na volta seguinte para cobrir qualquer chance de undercut da Ferrari, ainda que ela fosse mínima: para a estratégia de Bottas, não tinha segredo, era só copiar o que Vettel fizesse. Porém, ainda em dúvida se seu carro poderia fazer só uma parada, a Mercedes optou por deixar a estratégia de Bottas em aberto e colocou pneus médios, enquanto a Ferrari se comprometeu com duas paradas colocando os macios. Vettel estava liberado para forçar o ritmo.
Depois de perder a chance de parar antes de Vettel e usar a aderência extra do pneu para voltar na frente, cabia a Hamilton tentar levar o pneu macio até seu limite. Mas isso não deu certo: duas voltas depois, Lewis já era 3s mais lento que Bottas, e ele acabou parando apenas quatro voltas depois, na 21ª. Levando em consideração que as estimativas iniciais apontavam que quem quisesse fazer só uma parada teria de levar o pneu até a volta 27, ali já estava claro que era um erro.
Isso até Lewis viu de dentro do cockpit, quando ouviu que tinha voltado 7s atrás de Vettel e 17s atrás do líder (lembrando que no momento em que a Mercedes perdeu a chance do undercut, ele estava a menos de 1s de Vettel e a 6s de Bottas) e disse: “Estou fora da corrida agora, né? Por que não me colocaram com o duro? E agora querem que eu force, né?”
Respondendo a Lewis: sim, ele teria que cuidar dos pneus por mais de 30 voltas ao mesmo tempo em que não poderia deixar a diferença para Bottas aumentar em 4s neste mesmo período. O pneu duro era lento demais. E o jeito era reverter a estratégia para duas paradas, ou seja, ele tinha que forçar.
Depois da corrida, Hamilton disse que, “com uma orientação melhor, eu poderia ter ido até o final com aqueles pneus”. Ou seja, se não tivessem instruído que ele forçasse e tivessem permanecido 100% na estratégia de uma parada. Mesmo assim, isso não lhe daria a vitória, só abriria a chance dele se segurar na frente de Vettel.
Mas a Mercedes pediu que ele diminuísse a distância para Vettel primeiro pensando em um undercut (a Ferrari tinha deixado a porta aberta para isso porque o alemão teria que colocar o composto médio), mas Hamilton não conseguiu chegar perto tão cedo e Vettel acabou parando quando o inglês ainda estava 5s atrás.
A última cartada seria esperar os primeiros sinais de que o pneu médio de Hamilton já não estava tão rápido para ele parar e tentar usar a diferença de vida da borracha para recuperar o prejuízo. Por isso, na primeira vez em que ele foi mais lento do que Bottas, foi chamado. Voltou naquele cenário do começo do texto, com 4s6 para Vettel e 11 voltas para o fim. Não era fácil, mas era possível a equipe recuperar-se de todos os erros e conseguir a dobradinha, mas Vettel usou muito bem as qualidades da Ferrari e se manteve à frente.
Outra briga estrategicamente interessante e que acabou tendo o mesmo fim foi entre Alex Albon e Carlos Sainz. Albon ficou preso atrás do espanhol por todo o primeiro stint, antecipou bastante sua primeira parada indicando que faria duas. Como já tinha perdido a posição pelo undercut, a McLaren decidiu ficar na pista e Sainz levou o pneu macio até a volta 26. Retornou à pista muito atrás, 24s, e cruzou a linha de chegada a 6s do tailandês porque ele parou mais uma vez. O exemplo da corrida de Sainz é a tal “orientação” que Hamilton queria da Mercedes. No caso do espanhol, não foi o suficiente para ganhar a posição em um dia no qual fazer duas paradas era mesmo a melhor estratégia.
4 Comments
Julianne,
Me permita elogiar o seu trabalho, seus comentários precisos, com muito conhecimento técnico, muito fora daquela “mesmice “que todos copiam descaradamente de publicações internacionais. Os seus comentários, sempre muito claros, nos traz um conhecimento técnico que jamais saberia, todo esse jogo de xadrez que as equipes fazem com estratégias, o uso aprimorado do material (pneus, unidades de potência…), enfim, eu lhe agradeço por nos trazer um conhecimento de fino trato, profundo, e de alto caráter técnico. Brilhante! Desejo muito sucesso na sua jornada, e tenho certeza de que só vai melhorar. Abraço!!!
Obrigado!! Muito boa a explicação!!!
Excelente.
Só fiquei com uma dúvida em relação ao gráfico de consumo dos pneus que a transmissão de TV apresentou; como você já bem explicou, degradação e desgaste são coisas diferentes. Na sua avaliaçao, a degradaçao aumentaria bastante a medida que o desgaste aumentasse nos pneus do Hamilton?
Afirmações técnicas incríveis trazidas ao seu público Julianne!
Assistindo a temporada desse ano acabei chegando à conclusão que Bottas seria o melhor piloto em largadas do pelotão da frente. Você que está aí perto deles, Julianne, a conclusão procede?
Lendo o seu artigo também fico pensando o quanto a tecnologia tem influenciado nos resultados da F1 e como o peso do piloto é realmente menor nos tempos de hoje. Esttanho ter essa sensação, mas é o que parece.
Grande abraço a todos do Blog!