Como a Fórmula 1 organiza seu calendário - Julianne Cerasoli Skip to content

Como a Fórmula 1 organiza seu calendário

Por que a Arábia Saudita tem um GP de Fórmula 1 e a Alemanha não tem? Por que a F1 prefere correr no estacionamento de um estádio em Miami do que ir para uma pista de verdade como Laguna Seca? Em outras palavras, como a F1 escolhe seu calendário e por que pistas tradicionais sofrem para se manter no campeonato?

Calendário da F1 depende da oferta de eventos

Primeiro é preciso entender como cada pista consegue estar no calendário. Não é a F1 que vai em Silverstone e diz “seleciona essa data para mim”. Simplificando toda a história, cada GP tem um promotor, que faz um acordo para receber a F1 pagando uma determinada taxa anual por um número X de anos. 

Entender que os GPs pagam para receber a F1 é fundamental para responder às perguntas acima. Mas é só a ponta do iceberg.

Seguindo com o exemplo de Silverstone, eles pagam pouco mais de 25 milhões de dólares por ano para receber a F1. Isso, mesmo sendo o GP mais barato para a categoria, pois metade das equipes está a menos de 50km da pista. E também mesmo sendo uma pista extremamente tradicional. E, como é um GP que tem tido casa cheia mesmo com o aumento no preço dos ingressos, é bem possível que a F1 peça mais dinheiro no próximo contrato. 

O fim do ‘valor histórico’ dos GPs

Se Silverstone que é Silverstone não fica se valendo de “valor histórico” para seguir no calendário e paga inclusive acima da média das corridas europeias, imagine as outras, não é verdade? Bernie Ecclestone fez algumas concessões no passado (a mais gritante delas, inclusive, no Brasil, que ficou sem pagar por quatro anos no final do último contrato fechado por ele, irritando muito as equipes). A Liberty mudou essa história.

‘Ah, mas esses americanos não entendem nada’. Bom, primeiro é difícil encontrar algum americano na cúpula da F1 hoje em dia. Stefano Domenicali é italiano, claro, trouxe gente com ele, e a Liberty sempre contou com muitos ingleses, que, no fundo, sempre dominaram a categoria e nunca deixaram de ter mais influência.

Segundo, fazer mais dinheiro diretamente por meio do calendário não é algo de que as equipes reclamam. Afinal, é mais dinheiro para o bolso deles também. Principalmente em um momento de transição em outra grande fonte de renda para a F1 (leia-se, o bolo que é dividido entre Liberty e as equipes), os direitos de transmissão. 

A F1TV hoje virou um negócio milionário, mas nos primeiros anos exigiu gastos astronômicos sem garantia de retorno. Contratos muito valiosos, como o da Sky, estiveram perto de não serem renovados. E a Liberty conseguiu atuar bem em todas as áreas para aumentar os lucros neste cenário.

E os contratos dos GPs têm grande papel nisso.

F1 busca acabar com privilégios para racionalizar o calendário (e lucrar mais)

Certa vez, o ex-CEO da F1, Chase Carey, deixou escapar em uma reunião em que havia alguns promotores de GP que a média paga era de 25 milhões de dólares. A mensagem era para as provas europeias, que foram ficando no calendário empurrando taxas mais baixas. Mas claro que aqueles que puxavam a média para cima, como Azerbaijão, Rússia, Abu Dhabi, ficaram revoltados.

No final das contas, a jogada de Carey acabou dando certo no sentido de pressionar quem estava abaixo disso a se mexer. Leia-se, as provas europeias. Carey criou uma base informal de valores de 20 milhões de dólares para provas europeias e 25 para provas fora do continente onde as equipes estão sediadas, ou seja, para onde é mais barato ir.

COMO TER A LICENÇA DA FIA PARA RECEBER UM GP

Digo base informal porque ainda há exceções, e não estou falando só de dinheiro. Sim, há provas que pagam menos de 20 milhões de dólares, mas há um trabalho para mudar isso. Por exemplo, ter dois GPs na Itália também serve como pressão para aumentar o que Monza paga, pois é uma prova que ainda está ligeiramente abaixo da tal base.

Como Mônaco deixou de ser especial

gp de mônaco perdeu regalias nos últimos anos

Outro exemplo é Mônaco, ainda que ninguém saiba ao certo qual é o acordo com o novo contrato. Mônaco era um caso único, concentrava todo tipo de privilégio que Ecclestone dava em suas negociações. 

Não pagavam nenhuma taxa, tinham uma data fixa no calendário com uma programação diferenciada para ter o dia livre na sexta, faziam a geração das imagens. Logo que a Liberty assumiu a F1, em 2017, foi feito um acordo para Mônaco repassar parte do dinheiro cobrado para atracar os barcos no porto. Então a F1 começou a sair do saldo negativo de levar todo o circo para lá.

Depois, caiu a sexta-feira livre, fundamental para a F1 conseguir fazer dobradinhas e triple headers com o GP de Mônaco (ou seja, o GP não precisava estar mais isolado, sem outras corridas nos finais de semana próximos a ele). Caiu a data fixa, caiu a geração de imagens. E, pelo novo contrato, Mônaco agora paga uma taxa, como os demais, embora estime-se que o valor não chegue nos 20 milhões de dólares. Ainda.

Fim das datas fixas é fundamental para montar o calendário

Um desafio que a Liberty encontrou quando assumiu e percebeu que os contratos de TV estavam perdendo valor e o calendário precisava ser expandido para compensar isso e ser mais racionalizado para que isso fosse logisticamente viável foi o número de contratos com datas fixas.

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Isso demoraria alguns anos para ser corrigido porque era necessário esperar o fim dos acordos que estavam em vigor. Mônaco tinha data fixa, Canadá tinha data fixa, Japão tinha data fixa, etc. É claro que há outros limites para definir as datas. É tudo parte de uma negociação, que às vezes engloba a F1, os promotores e a cidade. 

Não dá para a corrida coincidir com outros eventos que vão colocar pressão na rede hoteleira. É preciso garantir que não haverá outros eventos na pista nas semanas anteriores, pois ela precisa estar “entregue” à FIA para as checagens de segurança. E em alguns lugares há limitações impostas pelo clima. Do frio de Montreal à temporada de furacões em Miami.

Como os promotores bancam os GPs

Por fim, há o próprio pedido dos promotores. Eles são como clientes da F1 de certa forma. Estão pagando caro para ter as corridas e precisam reaver o investimento de alguma maneira. Principalmente agora que a Liberty tem tomado conta dos ingressos de Paddock Club e das placas publicitárias. Novamente, nem todos os contratos são assim, mas é isso que a F1 busca: receber uma taxa milionária e comercializar as placas e os ingressos mais valiosos.

Em troca disso, os promotores podem pressionar a Liberty para ficar com datas que são mais atrativas para a venda de ingressos. E isso inclui evitar a realização de provas em vizinhos em datas próximas. Principalmente se os eventos têm um perfil de público semelhante. Foi assim, por exemplo, que os GPs da Bélgica e Holanda deixaram de ser realizados um seguido do outro.

Dinheiro estatal é fundamental para vários GPs, incluindo o Brasil

Mas dá para pagar as taxas milionárias apenas com venda de ingressos e ainda fazer lucro? É claro que os promotores não focam apenas nisso. É possível que a Liberty libere a venda de algumas placas publicitárias, permita que se cobre algumas taxas, como por exemplo dos containers em que as TVs se instalam, ou a comercialização de arquibancadas para empresas.

Mesmo assim, é muito comum que os eventos tenham respaldo financeiro governamental. Isso ajuda a explicar, por exemplo, por que o GP do Brasil se tornou GP de São Paulo. A história é longa, mas o contrato que começou a valer em 2021 é pago em grande parte pelos governos da cidade e do estado de SP. O mesmo aconteceu no México, onde o GP passou a ser chamado de GP da Cidade do México. 

Mas qual a justificativa para usar dinheiro público para custear uma corrida de Fórmula 1? Em São Paulo, por exemplo, a F1 é o segundo evento que traz mais turistas para a cidade. Os números do impacto econômico variam de acordo com a métrica usada. Mas a conta atual do governo da cidade de SP é de um impacto direto de R$ 826,2 milhões e indireto R$ 545 milhões indiretos, em números divulgados em 2022.

A taxa paga por SP pelos governos está na casa de 25 milhões de dólares, ou seja cerca de 125 milhões de reais. Daí a justificativa.

Sportwashing é uma realidade

E há também o impacto do evento na imagem do país e possibilidade de atrair turistas estrangeiros. Por isso, vemos o aumento do número de provas no Oriente Médio e também a ida da F1 a destinos como Azerbaijão, por exemplo. 

Nestes casos, os promotores conseguem apoio governamental para oferecerem taxas muito superiores aos 25 milhões de dólares por ano, e não só conseguem entrar no calendário, como podem fazer lobby por determinadas datas. Tanto, que os campeonatos têm começado no Bahrein e terminado em Abu Dhabi, duas das provas que mais pagam.

Falta de financiamento estatal é problema para GPs na Europa

Esse é outro motivo para a Europa ter perdido espaço no calendário. Voltando ao exemplo de Silverstone, a corrida é 100% financiada pela iniciativa privada. A Alemanha não tem GP porque nenhum promotor conseguia fechar a conta sem a ajuda governamental. A Holanda só tem um GP porque o efeito Max Verstappen é grande o suficiente para que a prova não precise de dinheiro público. 

Em grande parte da Europa, eventos automobilísticos estão longe de ser prioridade para os governos, muito pelo contrário. E é até por isso que a F1 foca tanto em suas metas de sustentabilidade (ainda que a logística do calendário não ajude) e está promovendo o uso de combustíveis de fontes renováveis.

O caso especial de Las Vegas

Tem uma prova com um esquema diferente. É a própria F1 que está promovendo o GP de Las Vegas, então eles mesmos assumem o risco de não cobrirem seus próprios custos. E os custos foram muito superiores às estimativas iniciais, batendo nos 400 milhões de dólares.

A Liberty assinou com a cidade de Las Vegas por 10 anos e vai assumir a promoção pelo menos nos primeiros três GPs, quando os gastos de infraestrutura são maiores. Eles têm uma parceria com os cassinos, que são donos das terras por onde passa a pista. Os custos foram aumentando por questões que foram surgindo, como o cabeamento debaixo do asfalto, para ficar em um dos vários exemplos.

Mesmo assim, a Liberty espera lucrar com a prova. Talvez não de cara, mas certamente ao final destes três anos.

É um risco que Bernie Ecclestone assumiu no passado e não se deu muito bem financeiramente. Mas a confiança da Liberty no projeto de Las Vegas é tão grande que eles não só falam em lucrar com a prova, como também em usar a grandeza do espetáculo que pretendem fazer para forçar os demais promotores a oferecerem mais aos fãs em seus próprios eventos.

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